segunda-feira, 15 de março de 2010

Sobre a fuga.

Aquele mormaço sufocante que entranhava todas as horas de todos os dias foi o que a impulsionou. As horas, sempre iguais, eram preenchidas por obrigações e deveres entediantes que não faziam sentido a ela. E os dias eram apenas seqüências de repetições: acordar, se arrumar, comer, sair, trabalhar, almoçar, trabalhar, voltar, dormir, esquecer, ignorar, rir por rir, relevar, fingir, respirar fundo, essas coisas. Pessoas e tarefas a obrigavam a agir e ela reagia. Era um tanto chato, mas, distraia: tanto as tarefas quanto as pessoas. Ela achava que só sabia fazer isso. Ou que era mais fácil fazer só isso. Questões de aprendizagem e costume. Sentia-se meio perdida e vazia nos finais de semana. E a perdição e o vazio nos deixam meio tristes. Então ela procurava ocupar o tempo com distrações práticas que a fizessem esquecer-se de si.

Ela não sabe ao certo quando começou. Deu pra ter falta de ar e uns apertos no peito. Começou a olhar pra pontos fixos no teto por minutos. Passou a reparar nas coisas a sua volta e teve medo quando pareceu tudo de mentirinha. Viu um futuro como uma desesperadora continuação do presente. Desprezou tão honestamente que achou injusto se recriminar. Sentia que sua vida era só um estado latente precedendo algo que nunca chegava. Tinha umas vontades estranhas de correr por aí ou andar sem rumo de madrugada. Ela não ia porque correr dói e a noite é fria. De repente, as vozes repetindo as mesmas palavras de ontem e anteontem, raramente inventando novas conversas, começaram a incomodar. Aí ela parou de falar e foi procurar o silêncio. Estranharam, insistiram, depois, como habitualmente fazem, desistiram. Como qualquer outro, ela nem era tão importante assim. A pessoa que mandava nela reclamou que ela não estava fazendo o que ela fazia direito. Ela olhou séria e mandou a pessoa se foder e foi mandada embora. Nem era tão importante assim.

As horas sobraram. Ela apreciou as pessoas nos finais de tarde. Fez coleção de frases de livros da biblioteca. Invadiu uma casa velha que era muito bonita. Plantou flores e as viu morrerem. Comeu comida de rico e depois vomitou. Procurou músicas de muito longe. Deu grana pra um mendigo louco que falava de deus. Apaixonou-se por um hippie que fumava maconha e mijava atrás da árvore. Teve uma crise de riso quando uma mulher apressada caiu no chão e deslocou o braço. Reagiu sorrindo a um assalto. Viajou pra uma cidade quase vazia pra andar no mato. Roubou um cacho de bananas e um CD pirata. Ficou bêbada sozinha. Beijou com sinceridade o vizinho do lado, um velhinho que morria só. Assistiu a bons filmes, aqueles de deixar a gente triste. Conheceu uns vagabundos e os chamou de amigos. Fotografou árvores pra elas não morrerem logo. Brincou com as crianças no playground. Fotografou pessoas pra elas se verem. Viu beleza em um cachorro atropelado que agonizava chorando. Comprou um caleidoscópio, um pião e um ioiô. Dormiu quando o sol acordava e conseguiu sonhar acordada enquanto o sol dormia. Correu de saião numa madrugada gelada. Sentiu alívio por as pernas estarem dormentes de tanto serem usadas. Sentiu o suor que saia da quentura de dentro dela. Sentiu que era feliz.

4 comentários:

Mari Hauer disse...

Nossa, como sempre, é muito difícil comentar um texto seu. Mas achei tão lindo e me vi tanto nela...

Pois é, seus textos têm a capacidade de me trazer para mais perto de mim, para mais perto de tudo!

Um beijo,

Raphael disse...

Personagem bem legal. =)

Ivan Ryuji disse...

Tiago!
Muito bonito esse!!
Realmente, no começo, na descrição da rotina, me vi muito ali... =[
Essa vida corrida e rotineira é muito ruim né..
Parabéns ae pelo texto..
Abraçoo

Ivan Ryuji
http://blogdoryuji.blogspot.com/

Anônimo disse...

Parece o trailer do filme Comer, Rezar e Dormir