quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Casualidades Cruzando Fatos Demasiadamente Triviais E Os Levando A Consequências Totalmente Desimportantes.

      

       “A verdade é uma faca de dois gumes”. Disse ele, pessimamente porre. Um dos piores tipos de porres são os terrivelmente filosóficos. Os amigos o olharam com aquela expressão de descaso que recebem os porres e um deles o aconselhou a parar de beber. Mas ele entornou outro copo de tequila e enfiou o limão no nariz antes de dizer num tom solenemente exagerado: “Vocês não aguentam a verdade, isso sim!”. Se levarmos em consideração que a existência da grande maioria das pessoas, incluindo aquelas presentes naquele bar/boate/antro, não diz respeito e não afeta significativamente a quase ninguém e considerarmos quase-ninguém um número fictício originário a partir da comparação da quantidade gigantesca de pessoas que dividem o mesmo planeta (talvez universo) que nós com o produto formado pela soma do número de nossos amigos/familiares/colegas-de-trabalhos/pessoas-que-podem-fazer-exatamente-o-mesmo-ou-melhor-aquilo-que-fazemos/conhecidos/seguidores-do-twitter, podemos considerar: a vida não passa de casualidades cruzando fatos demasiadamente triviais e os levando a consequências totalmente desimportantes. Em outras palavras, a vida é um troço muito louco.

       Por acaso, no exato momento em que ele proferiu aquelas palavras, uma moça tremendamente alcoolizada passou por trás de sua cadeira, esbarrando nas pessoas que dançavam e borrando sua maquiagem com lágrimas de bêbada. Outro dos piores tipos de porres é aquele formado pelos tremendamente melancólicos. Ela teve um insight e, subitamente, parou de chorar, parou de andar e disse, enrolando as palavras num momento de total falta de lucidez: “Eu sempre disse isso!”. Ela ficou lá, imóvel, estática. Não queria nem mesmo respirar, com medo de que a menor perturbação no ar estragasse aquele momento que ela julgava ser um daqueles mágicos que precedem as coisas muito especiais. Ela sabia que aconteceria algo muito especial porque além de pertencer ao grupo dos bêbados melancólicos, pertencia ao subgrupo dos tristes bêbados otimistas que acham que sabem de tudo. Uma amiga do carinha, o primeiro bêbado, riu e comentou com o resto da mesa: “Gente, a verdade não está lá fora, ela tá dentro das garrafas de tequila”, então ela virou outro copo e aconselhou o resto da mesa a fazer o mesmo para aquela coisa toda fazer mais sentido. Ele levantou-se.

       O rapaz era um rapaz normal, daqueles rapazes normais que tem de monte por aí e costumamos ver sem reparar*. A moça era mais chamativa: tinha uma beleza tão estranha que, de tão estranha que era, se parecia muito com feiura. Ele havia se levantado rápido, reagiu automaticamente à fala dela. Estava tão ansioso e frustrado por ninguém dar atenção às suas frases de impacto que nem notou que não conhecia quem disse aquela coisa simpática. Ele estava bêbado demais para distinguir traços fundidos aos borrões multicoloridos criados pelas luzes da boate, desistiu no milésimo de segundo que tentou fazê-lo: sentiu que ficaria com dor de cabeça, ou vomitaria, ou choraria ou talvez até acontecesse algo bem pior. Ela o olhou no fundo dos olhos, ou ao menos era isso que acreditava estar fazendo. Passado uns dez segundos, depois que ele finalmente se acostumou a ficar ereto sem sentir que iria cair, ele falou. O que aconteceu a seguir foi admirável: um dos diálogos mais bizarros, quiçá o mais nosense e babaca, que já aconteceu ou acontecerá naquele lugar que costuma abrigar os tipos mais variados de bêbados, idiotas, pessimistas, sonsos, poetas, escritores, porra loucas, intelectuais e outras pessoas que costumam se classificar e/ou agir de acordo com as características típicas e socialmente reconhecidas de gêneros humanos preconceituosamente definidos tão estranhos quanto os já citados.

          _ Tu me entende... Disse ele com cara de quem é compreendido.

          _ Claro que eu te entendo... Disse ela com cara de quem compreende.

        _ A vida toda... Eu fiquei esperando... Alguém que realmente me compreendesse.

        _Pra completar o vazio sem nome que tu não consegue preencher com nada?

        _Com nada... Porque nada é o que são todas as coisas agora.

         _Hã... Que coisas?

          _As coisas! O resto de tudo sabe?

          _Ah, agora eu sei.

         _Tu sente o mesmo, não é? Sabe que ninguém te conhecia até agora, agora que a gente tá aqui.

          _ Claro! Eu vivo dizendo isso pra minha mãe, sabe.

          _ Tua mãe?

          _ É! Eu digo pra ela pra ela largar do meu pé porque ela não me entende. HAHAH

          _ Ah... Tu é muito legal, sabe?

          _ Eu sei!

             (...)

         _ Mas tu me entende, né? Tu sabe a verdade?

           _ Claro que eu sei. Ninguém te entende, eu não me entendo, as pessoas não se entendem, a sociedade é hipócrita, abaixa o capitalismo, essas coisas todas.

         _ Isso foi engraçado.

         _Eu sei! Tu me entende também. Eu te amo, cara.

        _ É! Eu te amo também, cara. Vamos sair daqui e se amar longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita.

         _Porra, Legião! Eu te amo mesmo!

        _Vou vomitar.

         _Não em mim, seu merda!

        Os dois saíram cambaleando, agarrados. Os amigos do rapaz tentaram impedir, mas ele mandou eles irem para perto da casa do caralho e já estava todo mundo meio sem paciência/meio bêbado então deixaram por isso mesmo. Uma amiga da moça estava vomitando no banheiro, a outra estava sentada num lugar isolado, arrependida de ter saído de casa, enquanto as outras duas estavam dando apoio moral à primeira, então ninguém deteve ou viu quando a garota saiu atracada com o carinha. Foram até o carro dele e o carro dele os levou até perto do quarto dele e lá eles se “amaram” (transaram loucamente). No outro dia, ela acordou assustada e só não gritou porque imaginou que o barulho do grito pioraria sua dor de cabeça e porque sentiu um pudor que há tempos não sentia. Não se lembrava de nada. Um estranho, nu, babava no travesseiro. Ela se sentiu dolorida, invadida, arrependida e suja. Sentiu vontade de chorar e chorou. Um fato curioso causado pela amnésia alcoólica é que ela transforma memórias recentes, geralmente da noite anterior, em coisas parecidas a fragmentos de sonhos estranhos: por mais que tentemos ligar, esticar, copiar e colar, não deixam de ser fragmentos. Outro fato curioso é que sonhos, mesmos aqueles que não são tão estranhos, são estranhos por natureza.

       A verdade é que naquele dia, após meses adiando, ele fez o teste para HIV e o resultado deu positivo, então resolveu chamar os amigos e abrir o jogo. Ele não imaginava que teria que ficar bêbado para fazer isso e também não imaginava que fosse tão difícil contar isso mesmo bêbado. A morte é um troço tão louco quanto a vida: uma das diferenças básicas é que da morte não sabemos nada, no caso da vida pensamos que sabemos alguma coisa. Outra é que na vida costumamos nos mexer muito mais do que na morte. Voltando, pela lógica, podemos considerar que o fim da vida do rapaz, como o fim da vida da grande maioria das pessoas é: um fato demasiadamente trivial causado por uma casualidade que afeta significantemente a vida de quase ninguém. A não ser, é claro, que ele fosse a reencarnação de Jesus e ressuscitasse no terceiro dia, o que é muitíssimo improvável, já que isso desrepeita muitos dogmas e seria inaceitável para igreja Jesus morrer de AIDS, eu acho. De qualquer forma, algumas pessoas sofrerão e/ou sofreram. Não é o nosso caso, graças a deus. Porém, também não é o caso de nossa intrépida heroína que se recordou num momento pífio de lucidez, causado por uma sinapse neuronal muito oportuna que a lembrou de ter tido suspeito de gravidez a umas semanas, de usar a bendita camisinha. Ela nunca mais viu o cara e nem desconfiou que fosse porque ele havia morrido meses mais tarde: uma consequência tão desimportante para ela quanto para o resto de todos nós.

 

*Saramago escreveu “se podes olhar vê, se podes ver, repara”.

Não sei porque o diálogo ficou tão fora de formatação, tentei ajeitar e não consegui. ):

Me diverti muito escrevendo isso. Espero que alguém também se divirta. Obrigado por ler até aqui… Ou obrigado pela curiosidade que fez você ler só isso aqui.

Um comentário:

Clareana Arôxa disse...

A cada post eu me impressiono com a tua capacidade de ir lá em outro planeta e voltar. Caio de rir. O incrível disso tudo é que tu consegues passar estas histórias como se tivesse acontecido ontem. Você é bom, tua mãe deve já ter te dito isso hahaha.


Beijo, Tiago!