domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Egolátra

      Ela possuia milhares de convicções. Era prepotente, então tinha muita fé nas certezas em que acreditava. Eram verdades tão bem construídas, tão convenientes, que ela havia praticamente descartado a hipótese de ser surpreendida por quem as desmentisse. Um de seus dogmas mais importantes que, na verdade, só é importante para dar o andamento desta história, afirmava que: para um sujeito A sentir atração, recíproca ou não, por um sujeito B existe uma série de características intrínsecas aos dois que, quando combinadas, geram o tal fascínio. Isso parece muito óbvio, e na verdade é mesmo, mas ter consciência das tais características a fazia perceber o quanto eram irrelevantes e não justificavam algo tão forte quanto paixão ou amor. Isso transformava seus relacionamentos afetivos em relacionamentos sem afeto que nunca duraram muito. Ou porque a outra pessoa envolvida se cansava daquilo e queria algo mais sério, ou porque ela se enjoava da pessoa envolvida, o que era bem mais comum. Muitos dirão (como se muitos fossem ler isso kkk) que ela era uma medrosa e boboca, enquanto outros muitos dirão que ela era uma filha-da-puta metida à espertona, convenhamos que os quatro adjetivos lhe servem bem.

       Carência, empolgação com a descoberta, identificação, necessidades fisiológicas, admiração... Qualquer coisa virava desculpa para ela não se envolver: não que ela não quisesse, evitava se envolver porque achava que quando fosse realmente necessário, não conseguiria evitar. O problema é que ela não acreditava que fosse realmente necessário. Achava-se evoluída demais para construir laços de dependência assim. Até que apareceu ele. Apareceu porque veio de um lugar perto do nada, num desses acasos da vida que nos tentam a quase acreditar em destino porque geram consequências muito boas. Extremamente apropriado, ninguém quer crer que seu destino é trágico. Eles viraram melhores amigos. Nesse ponto ele já pode ser considerado um herói porque ela não era a pessoa mais sociável do mundo, era verdadeiramente chata. Só não foi marginalizada socialmente porque era linda e, já que a sociedade é movida pela superficialidade das coisas, ela não foi discriminada por ficar cagando conhecimento com epifanias tão irrelevantes quanto a que eu acabei de soltar.

      Era um cara realmente legal e até bem bonito e dele ela não conseguiu fugir. Dele, não, do sentimento, ele era gay e não iria correr atrás dela. Como quase todos sabem, a grande maioria dos gays não costumam se interessar em ter contatos físicos muito íntimos com mulheres. Então ela foi atingida no ponto fraco de quase todos os medrosos-bobocas-filhos-da-puta-metidos-a-espertões: o Ego. O ego dela era imenso: acreditava ser muito boa no que fazia e ela fazia um pouco de muitas coisas, incluído aí despertar o interesse de caras realmente legais. Ela era boa de verdade na arte milenar da antipatia, habilidade que lhe proporcionava inimizades por causa da sua sinceridade arrogante e exagerada. Quanto mais ela pensava, menos fazia ou sentia. E mais se achava a tal. Mas isso foi antes de seu amigo não se declarar num surto de heterossexualismo que só poderia ser provocado por uma mulher como ela. Apenas alguém com a estupidez maior que o ego encararia isso como uma ofensa.

      O ego, como quase todos sabem, é o grande responsável pela maioria das coisas absurdas e extremamente idiotas que a gente vê em lugares estranhos, como a internet. Um ego descontroladamente superdesenvolvido te faz ter a ilusão fantástica de que entre outros bilhões de pessoas que dividem esse pedacinho de espaço perdido na imensidão do universo, és especial. Essa ilusão só não é maior e menos fantástica do que a outra que faz o ególatra crer que o mundo tem a necessidade de saber (e ele o dever de mostrar) o quanto ele é especial para, contraditoriamente, receber uma aprovação necessária para ratificar que ele é ególatra por um “bom motivo”. Isso tem como consequências muita autoafirmação e paranoia. Ela tinha um ego tão grande que só se importava com o que achavam as pessoas pelas quais ela tinha alguma consideração, porque, para ela, a opinião de quase todas as outras era tal qual merda.

       Escondeu sua paixão porque era orgulhosa demais e porque era fundamental reprimi-la para que a lavagem cerebral que ela estava fazendo em si mesma desse certo. Eles eram amigos há um ano e há um ano ela estava perdidamente apaixonada tentando enlouquecidamente se encontrar. Tentou de alienação por meio trabalho a terríveis três meses de piriguetagem barata, passando até pela ressureição do namorado que a havia pedido em casamento meses antes. Evidentemente esse plano era tão arriscado quanto babaca e não deu certo, transformando a coisa numa obsessão. Então, após uma semana de reflexão profunda, na qual a maior parte do tempo ela passou porre na casa da melhor amiga, decidiu revelar a ele o que sentia. Uma tentativa dramática de anular o sentimento por meio da total aceitação.

      Falou como quem anuncia o resultado de um exame de fezes. Ela olhou fundo nos olhos dele e disse com voz firme: “Tô apaixonada por ti, não te preocupa que vai passar. A gente vai ficar um tempo sem se ver”. Ele primeiro ficou sem entender, depois ficou sem saber o que fazer e decidiu que a melhor opção seria ficar feliz. Para a surpresa dela, ele lhe disse, ou melhor, ele tentou dizer, tremendo e enrolando as palavras, que, desde que havia conhecido ela, estava colocando em xeque questões referentes à sua sexualidade que havia resolvido faz tempo. Contou que só não falou nada por causa do namorado dela e porque pensava que ela nunca olharia com outros olhos para ele. Disse que não parava de pensar nela, que estava confuso com o sentimento e a amizade e todo esse blá blá blá clichê e piegas, mas verdadeiro, que as pessoas falam quando estão apaixonadas. Namoraram quatro meses e depois de ele ficar na fossa por uns três, voltaram a ser bons amigos.

      Ela achou inadmissível ele gostar dela mais do que ela gostava dele. Achou até que ele gostava dela mais que ela mesma, isso era mais do que inadmissível, era quase imperdoável. Passou a o achar desinteressante e se enjoou, ficando muito aliviada com isso. Ele lidou mal com o fim, mas depois que começou a namorar outro rapaz viu que tudo não passou de carência, empolgação com a descoberta, identificação, necessidades fisiológicas, admiração e reticências. Seu namorado era um cara igualmente legal e atraente, respeitando a lógica de que pessoas interessantes tendem a se juntar com pessoas interessantes. Quando ele lhe disse isso ela ficou um pouco desapontada porque lhe agradava a ideia de alguém legal sofrendo de amores por ela. Depois ficou feliz pela felicidade do amigo porque não era uma escrota tão grande assim. Ou porque isso era muito justo e a fazia se sentir o máximo.

     Seu ego era tão imenso que só a rejeição de quem ela admirava muito poderia feri-lo, fazendo nascer algo próximo à paixão. Ela concluiu, afinal, que gostava tanto dele apenas pela convicção de que ele não gostava dela. Todo problema seria resolvido se ela tivesse confessado a paixão antes das coisas ganharem tanta proporção e drama. Mas aí ela passou a olhar com outros olhos para o namorado recém-adquirido do amigo. E a moça quase acreditou que destino existe e que o dela era realmente trágico. Mas desistiu de crer nisso porque era egocêntrica demais para compartilhar o mesmo destino com grande parte da humanidade. Ela achava que merecia um sentimento insuportavelmente grande. Conseguiu doses gigantes de frustração. Casou-se com alguém muitíssimo parecido à ela e levou uma vida razoavelmente boa. Nunca foi feliz por muito tempo: se achava boa demais para ser feliz.

2 comentários:

Ana Julia disse...

tiago, ah, tiago, tem um selo pra você no meu blog.
vê lá.

luciana disse...

desculpa se não ando comentando, mas não parei de ler teus textos. esse me deixou boquiaberta, quero conversar contigo a respeito depois. "Extremamente apropriado, ninguém quer crer que seu destino é trágico.", genial essa frase :)