terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Capítulo 2 – Parte 1 – Marília.

Como se acreditasse de verdade que funciona e vive exatamente como e quando quer, Eduardo deu-se duas semanas.

Durante quatorze dias, Eduardo permitiu-se sofrer. Para ele, tendo em visto os ocorridos, seus motivos são válidos o suficiente para justificar esse período torturante de desintoxicação. Izabel ainda é uma droga letal que corre entre suas veias e pensamentos, a mais deliciosa delas. Ela ativava no organismo dele os mecanismos químicos e hormonais, além de disfunções psíquicas, que o jogavam em furacões alucinógenos de euforia; seja entre fodas, discussões ideológicas ou nos seus silêncios constrangedores. Também havia os eventuais lapsos em que o pobre Eduardo ficava tão tonto que se vomitava de dentro de si, e já nem sabia o que era. Mas Izabel não gostava disso: o pior (e a grande questão que promoverá a sobrevivência e o martírio do Edu) se reside no que há de mais audacioso da Izabel: ela ama o que o Eduardo é, e forçava-o sem pudor a continuar sendo ele intensamente, mesmo que isso só fosse vantajoso para ela mesma. E restou ao Eduardo sua inútil companhia, as lembranças inúteis de um fresco presente destruído e um inútil sorriso idiota.

Os dias, obviamente, arrastam-se como se nem existissem. O tempo passa apenas fora. Dentro do Eduardo, são apenas sucessões de horas, de minutos, intercalados entre o sono, as refeições, as caminhadas e a livraria. Uma hora embaixo do chuveiro, mais outra para mastigar o miojo frio, dez minutos admirando uma encantadora barata, mais trinta admirando a encantadora TV, as centenas de luzes disformes projetadas pelos carros passando lá embaixo, uns sete minutos ponderando entre o chão e a cama, o colchão duro, outra noite em claro com a Izabel. Falta pouco menos de duas horas para o fim do quarto dia, tudo que o Eduardo tem feito é pensar no que fazer quando os nove se acabarem, e na Izabel.

Não é revolta, não é ódio (antes fosse), não é incompreensão, não é decepção, não é nem vontade de voltar: sobrou uma dolorosa compreensão, e a única escolha que o Eduardo tem é aceitar, e isso é sempre uma ferida aberta. Ele sabe que, por mais que o tempo o afaste da Izabel, ainda será impotente e irresponsável pelo seu presente, que poderia ser com ela. O Edu não acredita que haja outra fonte que lhe permita tantos momentos felizes. Esporádicos, quem sabe. É uma conformação injusta, um membro dilacerado, Eduardo é menos ele... É aí que começa a me machucar também.

Sexto dia. No trabalho, estranharam a decadência repentina. Carlos e Rose perguntavam o que tinha acontecido e o Eduardo limitava-se a dizer “aconteceu o que tinha que acontecer. Me dêem um tempinho”. Suspeitaram da morte de alguém próximo, de alcoolismo, de drogas ilícitas (Izabel é lícita), de problemas com dinheiro, de uma grave doença e, claro, “isso é desilusão amorosa”, concluiu a Rose. E resolveram dar o tempo ao Edu, “sempre foi um rapaz meio estranho, melhor respeitar”, disse o Carlos recebendo a aprovação da subordinada. Só o Luiz, o mais próximo de amigo que o Eduardo tem, ainda pergunta diariamente se ele está precisando de algo, se pode ajudar em qualquer coisa, e recebe toda vez a mesma resposta: “tô fodido, mas só preciso de uns dias. ‘Brigado mesmo assim, cara”. O Eduardo evita detalhar mais o caso, para não se aborrecer escutando conselhos idiotas e dispensáveis que, se resolvessem algo, ele não precisaria que os dessem, já estaria bem. E permanece em silêncio, letárgico, com os olhos fixos em pontos invisíveis aleatórios até algum cliente aparecer.

Oitavo dia. Se não fosse o Eduardo, não seria tão lamentável. Nu, andando de um lado par ao outro dentro de um cubículo abafado, às vezes senta na privada, e como um derrotado, sente pena de si mesmo. Talvez o que mais o atormente seja o súbito desaparecimento de sua vaidade e o murchar de seu ego. Ele, que esbanjava a confiança adquirida quando descobriu não ser tão comum; que sempre se deu um valor bem alto; que era inteiramente crente de si e tinha uma segurança invejada até mesmo pela Izabel (reconhecendo ter sido incapaz de amá-lo não fosse o Eduardo tão centrado e com uma personalidade tão marcante); agora sente uma vontade enorme de mergulhar no vaso sanitário e se libertar com a descarga. A frustração é maior.

A mente do Edu está fria e assustadora. Movida por uma lógica psicótica que, mesmo depois de sucessivas tentativas de alterar o resultado, insiste em colocar Izabel como o melhor e mais extraordinário que ele já experimentou ou experimentará. E tudo que não for ela, será algo parecido com mediocridade.

Décimo dia. Chega. Entra. Despe o uniforme. Caminha até a cozinha. Contempla a geladeira quase vazia por cinco minutos. Bebe água na garrafa. Vai até a pia entulhada de louça suja e nojenta. Liga a torneira. Aprecia o grosso feixe de água descendo rapidamente até estourar nos pratos. Regula a potência diminuindo a força da água. Volta a aumentar. Fecha outra vez. Torna a abrir. Coloca a mão direita embaixo d’água. Sorri. Finalmente sente algo novo. E escuta um barulho praticamente inédito. Batem na parta. Puxa por impulso a mão molhada. Demora a reagir. Batem forte. Anda com passos arrastados até a porta. Espera para ouvir as batidas de novo. Voltam a bater. Abre a porta.

- Oi. Eu sou a filha da dona Edith. Desculpa te incomodar. Eu sei que tu sempre paga o aluguel em dia, mas...

A moça fala atropelando as palavras, nervosa, meio assustada. Mas o Eduardo não tem ouvidos. Só olhos, contando sorrindo as sardinhas do rosto dela.

- Tá tudo bem contigo?

E o Edu que não derramou uma lágrima, nem no dia em que saiu do apartamento da Izabel, chora como um menino assustado. Chora desesperado, desabado. Soluçando de joelhos, apenas de cueca, agarrado às pernas de uma desconhecida.

5 comentários:

Anônimo disse...

Eu me identifico muito com o Eduardo. Quer dizer, já me identifiquei, já senti exatamente como ele, essa obsessão-compulsão, essa forma de sofrer, de não pensar em outra coisa, de me auto-mutilar.

Mas passou, por milhares de motivos já não sinto mais assim quando meu castelo desmorona, mas enfim...

E hoje, uma curiosidade que ainda fica de uma época já distante da minha vida é: onde será e como será que estava a outra pessoa?
Onde estava a Izabel? Como ela estava passando por tudo isso?

Ah, eu imagino que deva ter sido proposital. Tudo é tão grande e tão intenso nesse momento em Eduardo que impossível pensar em qualquer coisa que não seja pensar em como Eduardo se sentia e se arrastava entre os dias...

Beijos moço!
Gostei muito do texto...

Anônimo disse...

Perdidas mesmo, viu.
Olha, pelo que li do que você escreve... já posso dizer que vou querer ser assídua freqüentadora deste blog. (:

A Maya disse...

É, as vezes a paixão consome a gente de tal forma que nos rasga o peito.
Vira uma necessidade, um vício.

Continuarei acompanhando a história, moço escritor.

Anônimo disse...

o que houve ali?

tomara que a continuação me esclareça...

(:

Jaya Magalhães disse...

No aguardo.