segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Das Doces Invenções.

“Lá vou eu de novo, como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão”

Chico.


C2, infinito.


Eu fiquei imóvel. Virei uma daquelas estátuas antigas que têm gravadas nos seus traços metálicos corroídos pelo tempo a complacência de nunca ter existido. Deve haver ao menos uma dessa na tua cidade e, se há, tu sabes disso. Mas é bem provável que tu nunca tenhas enxergado os olhos de chumbo, quase deformados, belos e estúpidos, revelando a apatia de um sentir acéfalo. Da próxima vez que tu passares em frente a uma dessas, tenta te lembrar de mim e dos olhos. Eu vou tentar fazer o mesmo.
Desconhecidos são agrupados de possibilidades infinitas ambulantes. Dentro do silêncio, na superficialidade de carnes bem distribuídas e traços bem agrupados, na solidão partilhada envolvendo-os numa trama misteriosa e intrigante, na incapacidade de ler ou traduzir a grande epopéia arrebatadora que se passa atrás do olhar perdido, na grande aventura que é admirar como um espião ultra-secreto; antes dos gestos, das atitudes e das descobertas decepcionantes que desconstroem uma pseudo-perfeição presumível graças à capacidade que temos de nos enganar de um jeito tão sórdido, tão covarde e tão babaca que nem percebemos onde nós nos jogamos. Eu já desaprendendo a me portar.
Alguém que a ti é atraente e, por algum motivo besta, rouba tua atenção: a paixão que pensavas nem existir, o estímulo vital, 180º, a luz do teu esquecido espelho interno, a justificativa da tua esperança de bosta, o remédio para o tédio e a cura da tua sonolência, a vertigem que tu tanto querias, o entorpecimento poético tão frágil e lógico quanto a dopamina e a serotonina explodindo teu organismo, explodindo até tua alma: passou, perdeste. Nós perdemos tudo isso, nós perdemos toda hora.
Acho que é mais cômodo seguir nossa rotina escrota. É mais confortável nos matar um pouquinho em meio aos dias repetidos. Talvez, só talvez, assim seja bem mais fácil esquecer que hoje é o mesmo que ontem e, provavelmente, será a mesma porcaria que amanhã e depois. A mediocridade é uma dádiva, e eu sou ruim demais pra merecer isso.
Aperto no peito, adrenalina, mão no bolso, dedos no cabelo, sol fritando a cara, aproximação, olhos no rosto, cabeça levemente à esquerda, olhos nas nádegas. Belo rosto, bela bunda... E os segundos que precedem algo importante são tão extraordinários: deliciosos e torturantes. Nós sentimos prazer ao andar na montanha-russa, mesmo nos cagando de medo. Tem um quê de masoquismo, nos maltratamos com a espera pelo que nem sabemos. Maldita adrenalina. A paixão é só mais desses segundos, ela antecede seu próprio fim: apenas acontece a vida entre o nascimento e a morte, e é só. O que eu queria, afinal?
E ela? Antecede o quê? São tantas hipóteses: medo, uma risada, um susto, desprezo, desapontamento, indiferença, minha desilusão, surpresa, reconhecimento, meu desespero, uma conversa dispensável, um papo constrangido, as horas, um estranhamento, uma descoberta inexplicável, um toque, uma queda, uma perda, um arrependimento, uma paixão platônica, um papel ridículo, uma entrega, a doidice nem tão justificável assim, um beijo, uma viagem ao quinto dos infernos, outras palavras, essa loucura.
Eu conservava os segundos por diversão e vaidade, apenas para fingir ter absoluto controle sobre o improvável. Meu divertimento era experimentar a magia das verdades impossíveis que eu empilhava num castelinho de cartas repetidas. Mas eram verdades, até que eu me provasse o contrário, eram verdades incontestáveis. Sentia também aquele friozinho na barriga ingênuo que temos quando nos entregamos voluntariamente às ilusões: tendo plena consciência de que são o que estão sendo, e as chances de deixarem de ser, tende a levá-las ao mesmo fim fatídico dos segundos que as despertaram em mim. Eu sempre acho engraçada minha burrice, essa infantilidade me fazendo ser paradoxal falando desse jeito de um desejo primitivo, simples e natural, escondendo-o atrás da covardia, me protegendo da sua perda. Eu sempre sorrio diante de toda minha contradição, eu querendo o impossível: que as minhas escolhas não se anulassem. Falando até de coração.
Eu subi no ônibus paralisando o tempo enquanto meus olhos a fotografavam da janela. Carreguei os segundos, as teorias, as suposições, ela e todo resto da baboseira desimportante toda, tendo certeza de que a veria e teria tudo outra vez. Certeza mesmo. As chances de acontecer são bem grandes, é muitíssimo provável.
Enquanto não decido o que fazer com a minha invenção, eu preservo-a um pouco mais dentro dela mesmo. Quem sabe, amanhã, depois, mês que vem ou nunca, eu a use e vejo como isso funciona: o que resta depois do fim de quase todas as coisas que imaginei. A causa morte será sempre eu. Protejo-a de mim, então.
Quando deitar a cabeça no travesseiro, estarei pensando em hipóteses para dormir. Daí será como na tarde em que eu perdi uma tempestade enquanto ela embalava meu sopor e eu sonhava: quando acordei, a rua estava secando, e eu continuava inundado. Agora eu me pergunto, com um sorriso idiota e uma angústia estranha: de que valerá me afogar na minha pocilga de certezas em decomposição? A resposta eu encontro em uns olhos que já nem têm dona, e eu só lembro vagamente como são: embriagados, perdidos e tristes.





Faz um ano desde o primeiro post. Juro que até comecei a escrever algo saudosista, objetivo e babaca, mas achei muito mais justo poupar vocês disso. A gente não tem tanta intimidade assim.
Melhor a nostalgia de reviver velhos erros doloridos que já renderam tantas palavras bonitinhas. É estranho porque eu adquiri tanta consciência de mim, que já nem me importo mais com minhas bobagens, porque sei agora que são só minhas bobagens.
Sem o vago eu não seria o que eu sou hoje. Pior: não saberia o que eu sou hoje. Escrevendo a gente se conhece e se entende, isso é fundamental pra não sermos estúpidos. Ok, estúpidos inconscientes. Espero, sinceramente, que isso valha pra quem lê.
Eu já não escrevo mais por nada disso.
Quero agradecer muito a vocês que dão atenção a mim, sem vocês não teria tanto sentido. Muito obrigado.
É estranho vocês não me conhecerem, e vocês não me conhecem... Acho que é uma das grandes razões por isso aqui existir.
Viva isso. Huhu. (efusividade é sempre algo ridículo e/ou irônico)

7 comentários:

Jaya Magalhães disse...

"Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali, sozinho
Eu vou ficar tanto pior..."

Porque eu li o texto como se tivesse invadindo a intimidade de alguém. As palavras foram tão direcionadas! Eu fiquei pensando que talvez esse trecho inicial de Chico, aqui em cima, defina também parte do sentimento que você expôs em palavras. Sem perder o tom. A afinação. E o desafinar do lado de dentro, que ansiava em jogar pra fora o tudo - que não desgruda.

Quem é que pode contra o encanto?
Rs.

Saudades de ler aqui, Tiago.

Beijo.

Jaya Magalhães disse...

"É estranho vocês não me conhecerem, e vocês não me conhecem... Acho que é uma das grandes razões por isso aqui existir."

Viva isso, sim! Haha.

[Ainda bem que é assim].

E que eu possa acompanhar aqui, por mais um ano. E outro.

Larissa disse...

Então. É assim que nos conhecemos. Escrevendo pra pessoas que não conhecemos (e esse é o legal da história), porque essas pessoas lêem e acham palavras bonitas, onde muito podem haver sentimentos pesados e reais. Viva isso, sim! :)

Que seja doce!

Clareana Arôxa disse...

Achei engraçada a tua pergunta. Dói sim, mas é uma dor que faz parte de uma sensibilidade aflorada demais, intensa demais.
Mas aí vem aquilo de " cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é" e tudo vai arranjando o cantinho certo, sem dores demais e nem de menos.

E sim, nem sempre os textos que estão ali estão diretamente relacionados a minha vida. Cada texto é um capítulo novo de alguma coisa que nem sempre tem nome. Ou não.

No mais, sempre é muito bom vir por aqui e me deparar com as tuas linhas ácidas e acolhedoras.

Um beijo, seu moço!

Anônimo disse...

Hoje acordei e precisava ler de novo esse seu texto. Acho que eu precisava rir de mim. Do que eu já fui e o que eu ainda sou. Ou só ver o caminho que se fez daqueles dias até hoje.

Hoje, no caminho pro trabalho, fiquei pensando que desgostei da minha mania de sofrer. Achei graça de mim mesma, abri o vidro e me olhei nos meus olhos pelo retrovisor: é hoje eu sou muito mais inteira com os meus olhos sem dono.

Pode ser sem graça simplificar as coisas, mas dói menos. Então, continuo com os meus momentos de graça e encantamento, que duram só os seus cinco minutos! :)

Beijos!

E obrigada por colocar em palavras algo que já fez parte da minha realidade de fantasias!

Unknown disse...

juuuro que achei que vc tinha se magoado. :B

adorei esse texto, cada parte dele.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.