domingo, 13 de março de 2011

Evolução.

      Há milhões de anos atrás, alguns primatas passaram a se balançar sobre as árvores em bandos. Eles precisavam constituir famílias e uma organização política rudimentar para se protegerem porque, diferente de seus antecessores, viviam à luz do dia e isso os tornava alvo fácil de seus predadores. Essa necessidade de atenção constante e a hierarquia cada vez mais complexa exigiam daqueles bichinhos mais capacidade cognitiva do que eles dispunham. Elucubrações, preocupações, tentativas de comunicação, a ausência de vícios modernos além de outras coisas mais trabalhosas e mortalmente mais importantes do que as que fazemos hoje, fizeram os seus cérebros crescerem. Geração após geração, eles tornavam-se mais espertos. Até que numa bela tarde de sol um desses animais teve a brilhante ideia de descer de seu frondoso baobá. Para completar, ele chamou alguns de seus amigos para acompanha-lo em seu passeio. A experiência foi um sucesso e eles subiram de volta excitadíssimos.

      Os desbravadores fizeram muita propaganda para os outros e aconselharam todos a fazerem o mesmo emitindo rugidos que significavam coisas como: “Lá embaixo é muito divertido, aqui em cima tá muito caído, vamos todos descer, não sejam caretas”. Eles, aparentemente, adoraram o chão e cada vez mais e mais macacos desciam das árvores. Um grupo receoso se recusou a participar daquela aventura suicida, mas eles eram minoria. Na savana, eles tinham que lidar com leões, hienas, leopardos, tigres dentes de sabre e todo tipo de feras que adoravam comer aquelas coisinhas peludas e indefesas. Nossos amiguinhos precisavam se proteger melhor e isso lhes deixou ainda mais inteligentes e sociáveis. A vida em terra firme era difícil e, para se movimentar melhor, logo passaram a andar numa postura ereta. Eles ainda eram muito burros, mas, a partir, daí os cientistas dizem que eles já podem ser comparados a algumas pessoas e isso lhes dava o status de hominídeos.

      Esses homens primitivos sofreram algumas mutações ao longo de centenas de anos e isso foi os tornando um pouco mais parecidos com o Ricardo do que com um chimpanzé. Ricardo é um descendente direto desses animais espertos e de natureza muito sociável, assim como a grande maioria das pessoas que o cercam. Ricardo tem consciência da finitude de sua existência, possui o poder de resignificar as coisas e sabe usar a internet. Ele acredita que isso seja suficiente para se considerar um animal racional. Porém, ao longo de sua vida, uma série de acontecimentos frustrantes e experiências desagradáveis fez com que nosso herói acabasse por se tornar um humano que não se sentia como os outros da sua espécie. Ele era muito deslocado por uma razão que à primeira vista pode parecer besta, mas, se você pensar melhor a respeito, verá que ela chega a ser ridícula de tão simples: Ricardo não gostava muito de pessoas e não tinha paciência para relações superficiais. Contrariando sua natureza moldada a milhões de anos de evolução, indo de encontra com os valores que movem e sustentam a sociedade, resistindo às pressões sociais que o colocavam em situações muito embaraçosas, Ricardo não gostava de se juntar às outras pessoas.

      Ele não era autossuficiente, longe disso. Ricardo tinha alguns amigos com quem realizava atividades relacionadas ao lazer quando se sentia muito entediado e obrigava-se a sair de casa em um final de semana qualquer. Eles trocavam impressões a respeito da vida e riam bastante, essas companhias eram fundamentais para a manutenção de seu equilíbrio psicológico. Ricardo não sentia ódio ou aversão pelos outros indivíduos, o que ele tinha era uma indiferença sadia. Evita socializar não por repudio, mas porque não achava isso mais divertido que assistir a um bom filme. Suas tentativas de participar de ciclos sociais com muita gente resultaram em arrependimento amargo. Ele não entedia como as pessoas tinham aquela facilidade para falar espontaneamente com estranhos porque não os achava interessantes ou confiáveis a ponto de despertarem nele o mesmo estímulo.

      Certo dia os parceiros de Ricardo o convidaram para um jantar onde o apresentariam a seus outros amigos. Ele relutou, mas pensou bem e decidiu confiar nos seus conhecidos acreditando que só poderiam formar laços de amizades com pessoas igualmente atraentes e divertidas. Mas Ricardo falou apenas uma dúzia de palavras neste jantar que foi um fracasso. Ele não se interessava pelos assuntos discutidos, ficou com muito medo de opinar e ser incompreendido, não conseguia rir das piadas contadas, não se animava com as histórias e achou todos muito efusivos e vaidosos mais preocupados em falar do que em ouvir. Obviamente ele causou uma má impressão terrível nos desconhecidos.

      Em sua casa, Ricardo ficou repassando as cenas da noite e pensando nas razões que não o levam àquela felicidade aparente que todos demonstravam. Não havia gostado particularmente de uma moça que tagarelava a respeito de sua vida, nada relevante, e não deixava ninguém falar enquanto todos ouviam com um sorriso no rosto. Também não gostou nada de um rapaz que discursava como se dissesse as coisas mais importantes e originais do mundo e ironizava quem se atrevia a discordar dele. E não foi com a cara de uma senhora simpática que ria demasiadamente de tudo e estava sempre preocupada em não contrariar ninguém. Estava tentando decidir de quem havia gostado menos quando o telefone tocou.

_ Ah... Oi, Beto.

_ Porra, Ricardo... Que merda foi essa?

_ Falei que não era uma boa ideia, não era pra vocês terem insistido.

_ Tu nem te esforçou, cara.

_ Me esforçar pra quê, Beto? Eu vou bem sem aquelas pessoas...

_ Quantos anos tu tem, Ricardo?

_ O quê?

_ Quantos anos tu tem?

_ Er... trinta. Por quê?

_ Depois de trinta anos tu não aprendeu a fingir?

_ Fingir?

_ É, porra. Fingir interesse, fingir sorriso, fingir que tu te importa.

_ Er...

_ Porra, Ricardo. Tu sabe que eu gosto de ti de graça, cara. Mas tu é muito ingênuo.

_ Explica melhor isso aí.

_ Tu acha que aquelas pessoas tão muito preocupadas umas com as outras?

_ Eu sei lá, porra, explica melhor essa história pra mim.

      E o Roberto explicou para o Ricardo a importância de saber se portar socialmente e como aquilo poderia ser divertido, se ele não levasse as outras pessoas a sério. Naquela noite, Ricardo conversou horas a respeito de cinismo, falsidade e hipocrisia. Rio bastante das histórias que Roberto contou sobre conhecidos seus falando mal de outros conhecidos seus pelas costas e confirmou sua suposição de que ele não valia nenhum centavo. A teoria de Ricardo era que as pessoas tinham bastante necessidade das outras porque eram incompreendidas e se sentiam muito sozinhas. Mas Roberto riu disso e o convenceu de que as pessoas simplesmente usam umas as outras para se divertir ou para conseguir alguma outra coisa. Ele também lhe disse que ser cínico poderia ser muito útil para sua vida profissional e até que não era tão chato assim. Então Ricardo decidiu que entraria no jogo que evitava jogar por preguiça e comodismo.

      Ele está se saindo muito bem até agora. Tornou-se um cidadão simpático, solicito e até conseguiu alguma popularidade graças ao seu novo bom humor. Seu desempenho no trabalho também melhorou muito. Ricardo é visto agora como uma pessoa muito interessante. Ele realmente está se divertindo, como previu Roberto. Às vezes se sente culpado por estar sendo um pouco fingido, mas pensa na quantidade de novos amigos que também estão sendo falsos com ele e logo deixa esses pensamentos de lado. Ricardo descobriu que mesmo as pessoas mais desinteressantes podem ser divertidas, se você der uma chance a elas. Aprendeu a ter paciência com a diferença gritante que o separava dos outros e a ser mais compreensivo com quem antes o deixava irritado. Ele é inteligente o suficiente para ser falso da forma mais natural possível e todos o admiram por isso. Afinal, o aumento da massa cinzenta graças a desgastante vida em sociedade serviu para alguma coisa útil.

 

 

Quero dedicar este texto ao Rapha. Ele faz aniversário hoje e, sei lá, se não fosse por ele, acho que eu não escreveria metade das coisas legais que escrevo hoje porque, provavelmente, eu não me tornaria a pessoa que me tornei. ‘Brigado.

Um comentário:

Raphael disse...

Haha, gostei bastante.

Estou fazendo um "esse dois" (S2) pra ti.