sábado, 2 de julho de 2011

Sinal Fechado.

 

      Parado ao meu lado no semáforo, eu vi um homem borrifar a água usada para limpar para-brisas na cara de uma menina, ela tentava limpar o vidro do seu carro. Depois de fazer gestos negativos com a mão e diante da insistência dela, ele simplesmente jogou água em sua cara. A garota, mais surpresa que eu, ficou parada olhando através da película por uns cinco segundos. Fiquei observando espantando aquela expressão neutra, apática. Por um momento a vi irada, levantando seu pequeno esfregão e martelando com uma força sobrehumana o vidro até despedaça-lo. Mas, com vergonha de mim, admirei a criança enxugando o rosto com as mãos, baixando a cabeça e se dirigindo para o carro de trás.

      Eu me senti tão escroto que foi como se eu mesmo tivesse humilhado a menina. Senti vergonha de estar dentro de um carro com borrifador de água, à disposição dos serviços dela. Surgiu uma repulsa tão grande de mim que quis sumir para não ter mais a minha companhia. Tive vontade de largar o carro no meio da rua, ir até o veículo do homem e perguntar se ele não tinha nojo de ser ele mesmo. Quis enfiar o esfregão no cu do cara, quebrar seus membros, atirar uma pedra em cada vidro do seu carro, botar fogo em sua casa. Mas aí o sinal abriu, respirei fundo e seguimos, como se nada tivesse acontecido, em direção opostas.

      Depois ainda fiquei imaginando se a menina estudava, se tinha casa, se tinha o que comer, se tomava banho, se usava drogas, se tinha pais, uma boneca, roupas, alguma alegria. Fiquei me perguntando se o homem tinha filhos, se foi maltratado quando era criança, se acreditava em Deus, se era rico, se estava puto com alguma coisa, se pagava os impostos em dia, se conseguia dormir tranquilo à noite. No entanto, logo depois me consolava repetindo mentalmente que eu estava sendo dramático e que coisas assim acontecem todos os dias. Que a responsabilidade daquilo era dos idiotas que colocaram a menina no mundo, e eu não tenho nada a ver com isso. Que não faz sentido me martirizar por algo que não depende de mim pra acontecer ou acabar. E me tranquilizei tão facilmente quanto me emputeci.

      Um grande intelectual chamado Milton Santos disse que a humanidade nunca existiu e que só agora estamos fazendo ensaios do que será a humanidade. Eu concordo, ao menos em parte. A história humana é marcada por guerras, violência, brutalidade, disputas de poder, opressão. Se analisarmos dessa forma, é evidente que evoluímos ao longo dos séculos. A selvageria tornou-se inadmissível, a discriminação (ainda que teoricamente) é socialmente condenada, os índices de educação aumentam consideravelmente, as liberdades individuais passam a ser gradativamente mais respeitadas e um otimismo sadio é criado em torno da crescente popularização das novas tecnologias.

      O problema é que a natureza humana é a mesma desde o início e não há previsão para que isso mude. Somos egocêntricos, vaidosos, egoístas. Há tempos vivemos no “salve-se quem puder”. A urbanização foi, é e continuará sendo só um pretexto pra deixar as coisas mais confortáveis pra quem tem o poder de aproveitá-las à custa dos que não podem. E ainda reclamamos das consequências dessa violência velada, dessa indiferença que julgamos inculpável. As cidades abrigam paranoicos, estressados, explorados, marginais, iludidos, babacas e todos disputam diariamente os mesmos espaços. As pessoas, as amizades, se tornaram apenas entretenimento barato. Compaixão e solidariedade saíram de moda. Nós nos perdemos no meio dessa letargia sem nem perceber. Não foi só por não ter feito nada em relação ao episódio da menina que eu me senti um merda: eu me senti realmente mal porque sei que há outros milhões como ela, e eu também não vou fazer nada por nenhum deles. Assim como os outros, estou ocupado demais preocupado comigo mesmo, tentando me salvar.

 

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