sábado, 7 de abril de 2012

Não ressuscitou porque nunca morreu.

      Espelho com moldura de cobre, cômoda negra empoeirada servindo de aporte, o homem se estica pra admirar as rugas. Nos retratos sobre a madeira gasta, o tempo expunha sua força retrocedendo o estrago dos anos. Há mais rugas no espelho do que ele deveria refletir. Prostrado diante do móvel, o homem se concentra nos sulcos da testa, nos pés de galinha, nos cantos flácidos da boca. E depois de quinze minutos de contemplação inútil, de comiseração vergonhosa, eis que o espelho, cansado de ser usado por anos, chateado pelos minutos, se mata num surto colérico. Renegando sua natureza, o vidro se contrai e explode, vazando as pupilas do homem com um pedaço de 33 centímetros de si.

      Quando finalmente se aperceberam da morte, quatro dias depois, a casa já estava tomada pela indecência dos restos entranhando o ar. Ninguém entendeu a brutalidade do que chamaram de homicídio. Ninguém entendeu nada, aliás. Nem a polícia, nem os peritos, nem o zelador do prédio, nem o porteiro, nem os físicos e, por incrível que pareça, nem mesmo as tias carolas tinham uma explicação. A família chorando, os irmãos desnorteados, as filhas em choque, o filho mais velho desesperado, a orfandade trágica como uma Coca-Cola de 2l que chega ao fim antes da sede. E o espelho lá, única testemunha de seu crime, espatifado, manchado com um sangue que não era seu, ressuscitado em fragmentos que tornavam tudo ainda mais confuso, puto da vida.