domingo, 17 de abril de 2016

José Maria Silva

*publicado originalmente no portal Interage.


Ele já era um homem velho. Calvo. Uns cinquenta e tantos anos, quase sessenta. Ostentava uma barriga saliente. Vestia uma camisa social manga-longa branca, meio surrada, e uma calça jeans azul clara. Tinha um rosto firme, castigado por rugas que rodeavam seus olhos. Definitivamente, não havia nenhum traço físico marcante que poderia lhe destacar dos demais. Entrou no ônibus. Eram seis e meia da tarde. Horário de pico. Avenida engarrafada. Buzinas por todos os lados. O calor fazia tudo ficar ainda mais desconfortável. Todos, sem exceção, aparentavam estar exaustos. Havia cerca de dez pessoas em pé, distribuídas disformemente pelo corredor paralelo aos assentos. Ele deu boa noite ao cobrador. Pagou a passagem e passou pela catraca. Notei que carregava, embaixo do braço esquerdo, alguns pequenos caderninhos que pareciam manufaturados com folhas A4. Ele parou do meu lado e pegou com a mão direita um dos exemplares da publicação caseira. Baixou a cabeça por uns instantes e guardou o troco no bolso. Forçou a garganta baixinho para tirar o pigarro. Encarando de frente os passageiros, ele disse:
– Eu sei que nenhum de vocês gostaria de estar me ouvindo falar alto e interromper a viagem de vocês. Mas acontece, gente, que essa foi a única maneira que encontrei de divulgar meu trabalho. O meu trabalho é esse aqui, ó: são poesias, gente. Eu mesmo que fiz. Tudinho, fui eu que escrevi. Não vou mentir pra vocês, deu trabalho sim. Trabalhei minha vida toda como porteiro e só depois de velho aprendi a ser poeta. Escrevo durante o trabalho mesmo. O seu Otávio, que é o sindicato de lá do prédio, disse que eu tenho muito talento. Gente, eu gosto mais de fazer poesia do que de ser porteiro. Mas, gente, pensa comigo: eu tenho dois filhos que ainda tão lá em casa pra eu sustentar, minha mulher é empregada e não dá conta de pagar as contas todas sozinha, como é que eu vou parar de trabalhar de porteiro pra ser só poeta? Não dá, gente. O meu sonho era viver só de ser poeta, mas como é que vou viver disso nessa cidade? Já me chamaram de doido, de vagabundo, até de viado já me chamaram, mas eu não ligo, não. Quero mesmo é ser poeta. Vocês não sabem a alegria que eu tenho quando faço uma poesia. Vou ler uma aqui pra vocês: “O amor de Deus é tão bonito/Que só pode mesmo ser infinito/Cuida, Pai do céu, pra que todos possam estar contigo/Recebendo tua Graça e compartilhando teu abrigo.”. E por aí vai, gente. Imagina se todo mundo lesse poesia, o Brasil não ia ser um país muito melhor? As pessoas não querem mais saber de ler e isso é muito triste. Um país de pessoas que não leem não pode ter futuro, não. Olha a violência como tá, olha a corrupção, paciente morrendo em hospital, é muita notícia triste! Falta poesia no coração das pessoas. Eu tô fazendo a minha parte. É como Deus disse: “Faça sua parte que eu te ajudarei”. Custa dois reais o livrinho, gente, tem mais de trinta poesias. É bem sortido. Quem puder estar dando essa força pra o meu trabalho, eu vou ficar muito agradecido, viu? Boa noite pra vocês.
Precisei conter o choro quando dei as duas moedas de um real a ele e, enfim, pude olhar fixamente em seus olhos. Aquele homem era tão diferente de mim, vinha de um mundo que parecia tão distante que, talvez, não conseguíssemos conversar e nos entender por mais de meia hora. Não por falta de assunto ou de interesse, mas porque eu ficaria, sinceramente, constrangido de expor minhas dificuldades ao conhecer as dele. Quem sabe, ele não se importasse de fazer um monólogo para mim. Fiquei querendo saber se ele conhecia Drummond, Leminski, Manoel de Barros, Bandeira, Ana Cristina Cesar, Bukowski, Baudelaire. Provavelmente não. Tive vontade de dizer que o compreendo, que também gostaria de ser poeta, que a vida, às vezes, é foda e não dá margem para sonhar, que o mundo, de fato, seria infinitamente melhor se as pessoas tivessem sensibilidade o bastante para consumir poesia. Mas não falei nada. Olhei para trás e vi outras duas ou três pessoas comprando seu livrinho: “José Maria Silva – Poesia Reunida”. O José desceu do ônibus agradecendo a todos, parecia satisfeito. Depois, lendo seus poemas, de uma simplicidade que os tornavam quase infantis, percebi que eu era um José Maria também. A poesia entranha e escorre. Não se faz poesia por escolha, se faz por necessidade. O José tinha a minha precisão. Com seu esforço, era maior que eu. Senti inveja pelos livros que nunca publiquei ou fiz à mão.

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