quinta-feira, 24 de julho de 2008

À.

Chegou feita fumaça. Era ríspida, seca, disforme, misteriosa. Cinza, se tinha cores escondia no corpo indecifrável: espesso, envolvente, impenetrável, invisível.

Era eu: vulnerável e perdido, olhos lacrimejando, boca seca, medo em forma de tremores incontroláveis, atônico, assustado. Cego.

Não via além: os olhos vermelhos denunciavam o estrago que se fazia esporadicamente em mim.

Passei então a respirar ofegante, sentindo-a entrar pelos poros, todos aberto; e a minha boca sentiu o gosto da fumaça, de fogo morto; nostálgico, frio. Ela invadia minhas narinas e eu experimentava toda a umidade do corpo se esvair dando lugar a um ardor dilacerante. Chegou aos meus pulmões soprando despretensiosa; sádica, divertia-se com minha incompreensão digna de pena. E meus pulmões murcharam, e o peito vazio. Opaco ecoando gritos secretos.

Alastrou-se pelo tronco, braços, mãos, dedos, pernas, pés, músculos, cérebro, fígado, rim, veias, vasos, artérias... E só me restou um coração escuro, sujo pelas cinzas do corpo queimado por dentro, batendo descompassado. Batendo pela fumaça.

Padecia paralisado, imóvel. Já não era eu, era recipiente dela. Aquela doença, aquele parasita, que me corria, me enlaçava, me apaixonava.

Envolvido, enfim, submerso na imaterialidade da névoa lancinante, já não tinha mais individualidade; perdia-me, e me misturava ao ar mórbido que não sufocava mais.

Aí percebi que era orgânica. Tive que ser roubado, roubado de corpo e espírito, até não sobrar de mim o suficiente para ser qualquer outra coisa diferente dela, pra notar que tinha um coração. Ela toda era um coração.

Coração inútil, disfuncional.

Fazia-me senti-la daquela forma, intensa e instantânea, para sentir-se a si mesma.

Então eu, inválido, louco e suicida, abandonei minha carcaça e me fundi como se fosse peça do quebra-cabeça incompleto. Evaporei na fumaça cinza.

Parte dela: nela, por ela.

11 comentários:

Clareana Arôxa disse...

Não consigo dizer nada. Essa intensidade silenciosa levou minhas letras como fumaça. Fique atônica com a imensidão das tuas frases, com o paradoxo da incerteza nos parágrafos. A fumaça foi e eu fiquei aqui, submersa, pulsante, subjetiva.

Ficou absurdamente bom esse texto. Você escreve bem demais.

beijo!

disse...

"Então eu, inválido, louco e suicida..."

Denso! Legal o texto!

abraço

taís monteiro disse...

(: me estranha você me ler, quando você mesmo é tão possuído de um escrever tão profundo e pessoal.
me envergonha saber que um escritor com tanta eloquência dedica uns minutos perdidos na minha página perdida.

Jonathan Botelho disse...

eai cara,cheguei no teu blog pq vi teu comentrio em outro, po muito massa o que tu escreve aqui, é bem denso eprofundo msm.
abração

Narradora disse...

Bonito e intenso.
Aceitação e entrega, sina e não opção.
Gostei muito.

PS:Minha primeira vez por aqui, muito interessante o seu espaço.

Labirintos disse...

Muito, muito obrigada pelas palavras doces. Não sei se sou digna de todas estas palavras tão belas, mas com certeza despejo toda minha alma nestas entrelinhas.

Fico feliz de ver em mim, em ti, em outros, na minha na sua ou em qualquer escrita sentimental, que nem tudo está perdido. Que talvez nessas escritas desesperadas esteja a real beleza que o mundo necessita.

Também escreves muito bonito, muito sutil. Meus sinceros parabéns.

Luciana Clarissa disse...

é realmente impossível comentar qualquer coisa depois de ler um texto assim... não existem palavras, não existe idéia, não há o que acrescentar, dizer, apontar.
Muito bom. Essa intensidade voraz, essa força quase assustadora, essse jogo de palavras sóbrias e lúdicas é um presente para quem gosta de ler bem, coisa boa,interessante perfeição.
Sem mais ou meias palavras: tira meu fôlego vir até aqui.

parabéns.
:)

Tiago Amorim disse...

Não posso deixar de discordar do povo aí de cima! Realmente o jogo que vc faz com as palavras é mto interessante! Agora o sono não me permite fazer um comentário melhor do que esse, mas depois volto aqui!

Marla de Queiroz disse...

Estou impressionada.
Você escreve muito bem.
Parabéns.

Anônimo disse...

Densidade que pode dominar o ar que respiramos. Forte.
e fico grata(e na verdade até mesmo encabulada)pelos elogios.

Filipe Garcia disse...

Sua cena descrita de forma arrebatadora me causou medo, um pouco de receio pela personagem que, de forma intensa, deixou-se tomar por inteira. Experiências como essas são perigosas, mas têm lá os seus prazereres. O coração gosta dos riscos, a gente sabe. A mente é que pede pele lógica.

Gostei do texto, Tiago! Me fez pensar.

Abraço