terça-feira, 18 de novembro de 2008

Pierrot.




*Baseado em fatos mais ou menos reais.



Sentado aqui, sem de fato saber se estou ou sou, enquanto formo desenhos surreais em nuvens cinza, bebo do sangue translúcido que escorre acariciando meu rosto e ardendo meus olhos até me beijar e trazer o gosto de passado desbotado, eu desço as pálpebras buscando consolo no último lugar que deveria olhar: dentro de mim.

Então o vento me traz o cheiro de molhado, de asfalto a 40º sendo morto, e abro os olhos para ver árvores desfolhadas com troncos num tom de ocre envelhecido e acabado, folhas amarelas voando lentamente em bandos sem qualquer rumo, a grama brilhando num verde incandescente contrastando com a luz esbranquiçada do sol que rasga ferindo meus desenhos e, sob cada poça de concreto, vidro ou qualquer outro dejeto humano liquefeito com a água, dançam embriagadas e contentes pessoas com roupas coloridas e faces pintadas de pierrot. Gargalho.

Vieram-me as teorias, e com elas a responsável, direta ou indiretamente, por quase todos os medos que sentimos: a incerteza. Sinto medo, enfim. Medo de ferir o mundo, de machucá-lo com meu egocentrismo que fatalmente irá implicar nele meu gosto, como se eu pudesse de fato alterar o sabor das coisas. As constatações são a pior a parte: não posso ser tão irresponsável e pobre de espírito a ponto de transferir a maior de minhas dores apenas para não senti-la. Gargalharei.

Sentado ali, com a cabeça dentro das mãos, via uma projeção do que eu mais queria, e sabia que não poderia ser menos que minha vontade: porque o meu querer é abastecido pelo que eu sinto, e a vontade de sentir é tamanha que me sobreponho ao que acredito. Pensava nas folhas tontas caindo e na grama se apagando melancólica quando me chegou alguém risonho ensaiando uns passos de bailarina bêbada. Alguém, que com os olhos colheu as lágrimas do céu preto e branco, me disse com uma voz viva e invadida por uma felicidade estranha: “as realidades que construímos e cada momento que vivemos se despedaçam inevitavelmente porque...”. E não terminou, e gargalhou. Chorei, chorei com lágrimas de ninguém.

Os meus desenhos se desmancharam num céu azul tão vazio e uniforme quanto as mentiras que ele protege.




"Ninguém vive a paixão impunemente."
Clara Averbuck.

8 comentários:

Mariana disse...

Ninguém vive a paixão impunemente...

sempre que leio Pierrot, lembro de uma musica do Los Hermanos que diz assim: "o pierrot apaixonada chora eplo amor da Colombina, e sua sina é chorar na ilusão... em vão..."

bjs

TIAGO JULIO MARTINS disse...

http://www.flickr.com/photos/va-go

Mari Vianna disse...

MUITO complexo pra minha cabeca, mas adorei. Li duas vezes pra entender melhor, ainda sim acredito que tenha muita coisa na sua cabeca que palavras nao descrevam. Mas muito bonito :)

Adorei as contradicoes !

Beeeijos

Anônimo disse...

esse texto é daqueles que a gente lê dando voltas dentro de nós mesmos.

adorei as contradições (2)

beijonocê, beibe

Vâmvú disse...

Passeando de blog em blog cheguei aqui... Muito bom esse texto. Gostei muito mesmo.
Parabéns!
Vou marcar e voltar depois pra ler mais...rs
Abraços

Cynara do Céu. disse...

num momento de superconsciência de si mesmo?!

legal o estilo. Vou acompanhar teu talento.

=]

Renato Ziggy disse...

“as realidades que construímos e cada momento que vivemos se despedaçam inevitavelmente porque...”

Essa frase me incomodou. Se eu estivesse no lugar da personagem, acho que não choraria. O que sei é que meu olhar se desviaria pra algum lugar qualquer e que minha respiração mudaria de forma súbita. Porque eu, com certeza, tentaria criar mecanismos internos pra reiterar pra mim mesmo que momentos, caso eu permita, podem se tornam relíquias e, a partir daí, serem versados e/ou valsados em algum canto. E aí sim seriam mais que pedaços de algo que se desintegrou. Seriam como retalhos de algo que se desconstruiu, para que novas coisas eu pudesse construir.

Ou seja, pirei daqui. E gosto de textos que me provocam essas coisas. Você é bom, cara! Se incomoda se eu voltar? Abraço!

disse...

"Os meus desenhos se desmancharam num céu azul tão vazio e uniforme quanto as mentiras que ele protege"

isso esclarece coisas até sobre fatos da minha vida, rs.

nunca estou impune =/

abraço