domingo, 6 de março de 2011

Deus existe, mas isso não é muito importante.

     

       Durante a maior parte da minha existência, desconfiei que houvesse algo muito estranho com ela. Não me refiro a mim: de modo geral, faz tempo que existir começou a soar um tanto quanto absurdo. São quase sete bilhões de seres humanos coexistindo e, para cada um de nós, a visão que temos da vida corresponde a uma realidade diferente de qualquer outra. Somos o centro de nossas vidas e, no entanto, elas não significam nada para todas as outras que permanecem independentes de nós. Essas constatações determinaram a forma cínica com que passei a encarar as coisas. Exemplo: a manchete do Jornal anunciava “Estudante mata vinte em escola pública” e, enquanto todos comentavam que a humanidade estava perdida, eu dizia rindo: “A humanidade está perdida desde que se deu conta de si”. Esse tipo de comportamento afasta as pessoas de mim, mas eu me divirto bastante.

      As religiões seduzem com dogmas que nos tranquilizam dando um sentindo maior a tudo isso. Desta forma, temos que nos preocupar apenas em ser subservientes e covardes. Francamente, entre um ser um desiludido e um tapado, eu prefiro a primeira opção. Como eu disse, o fato de eu achar a existência bizarra me permitiu complacência para ficar praticamente imune às surpresas desagradáveis que surgem pelo caminho. Ora, se não há sentido na vida, não poderia exigir dela acontecimentos lógicos. De tal forma que a visão daquele homem só fez com que eu ratificasse a minha teoria de que, se há algum sentido, ele está além da minha capacidade de captá-lo.

      Sou aposentado, divorciado e um pouquinho alcóolatra. Faz tempo que moro sozinho e nunca presenciei acontecimentos sobrenaturais de natureza alguma. Acredito que o fato de eu não crer em nada do gênero contribuía muito para isso. Para mim, a crença cega tornava suscetíveis às pessoas a terem essas experiências paranormais. Esquizofrenia também. Como eu não tinha fé alguma e apresentava um quadro psicológico estável, pensava ser impossível ver qualquer coisa que nem achava admissível existir. Bom, eram estas minhas suposições presunçosas até aquela noite. Não costumo receber visitas inoportunas. Meus filhos sempre ligam com antecedência assim como meus amigos e, enfim, eu não esperava ninguém vindo do outro plano naquele momento em especial.

      Ele era bem negro, muito velho e tinha os cabelos tão brancos quanto os dentes. Vestia uma túnica azul clarinha que emitia uma luz estranha e contrastava bastante com seu tom de pele. O infeliz brotou no ar sorrindo, feito criança que faz arte. Logicamente fiquei sem reação e meus batimentos cardíacos devem ter cessado por uns quatro ou cinco segundos. Por quatro ou cinco segundos meus pensamentos pararam e eu virei um bicho muito assustado. Meu sistema nervoso, com certeza, ficou sem saber que resposta dar aquele estímulo e decidiu entrar em curto. Estava em choque. O coração batia muito forte quando consegui perceber um pouco o que estava acontecendo. Dei-me conta do seguinte: primeiro que meu coração estava aceleradíssimo e depois que tinha um ancião aparecido de canto nenhum no meio da minha sala. Levei calmamente o copo de uísque à boca, pois achei que aquilo era a coisa mais sensata a se fazer. Então Deus disse:

_ Oi!

      Eu estava justamente pensando no quanto o achava um escroto quando o safado me apareceu. Eu apenas estava me divertindo, reclamando inocentemente e tendo ponderações idiotas. Eu não o chamei, nem mesmo acreditava na sua improvável existência. Minhas críticas se dirigiam à ideia que o senso comum faz de sua pessoa. Eu não consideraria uma ofensa pessoal grave ao ponto de justificar sua vinda. Porém, Ele veio mesmo assim. Não foi uma aparição como aquelas que escreveram naqueles livros. Ele simplesmente se materializou, indiscretamente, diante de mim sem prévio aviso. Não esperava um sinal luminoso abrindo o céu, nem uma sarça em chamas ou um mensageiro marcando hora. Mas, poxa, um vento estranho soprando as cortinas ou um calafrio na espinha prepararia meu espírito. Eu assistia a uma dessas tragédias naturais, que sempre rendem boas imagens para a Tv, e bebericava meu Green Label quando o Homem surgiu.

      Eu estava numa situação muito delicada. Naquele momento eu não sabia que a aparição era Deus. Para mim, era um espírito qualquer que não tinha coisa melhor para fazer. Minha pressão estava altíssima, quase desmaiei, mas tentei me manter o mais calmo que pude. Sou um homem frio e muito orgulhoso. Considerei inadmissível a ideia de ter um piripaque à custa de uma alma penada intrometida. Sim, vocês podem argumentar afirmando que todas as minhas crenças (ou descrenças) a respeito da vida após a morte e demais questões metafísicas caíram por terra e que qualquer um ficaria psicologicamente abaladíssimo. Porém, não sou qualquer um.

      A vinda daquele fantasma simpático de não sei onde para dentro da minha casa me incomodou demais e eu só queria que ele fosse embora. Eu não tive uma boa impressão: era uma assombração e, pior, era efusivo! Quando consegui sossegar o suficiente para que meus pensamentos fluíssem de forma organizada, decidi tomar uma atitude para me livrar dele. Talvez alguém mais sagaz no meu lugar esclarecesse os grandes mistérios da humanidade num bate-papo informal com aquele velhinho desencarnado. Eu estava sem paciência, relativamente bêbado, com sono, e não gostei de ter sido perturbado. Quem sabe tenham sido esses os motivos que inibiram minha curiosidade. Não me arrependo das perguntas que não fiz, é quase certo que suas respostas me fossem inúteis. Aliás, quase tudo aquilo foi inútil, incluindo aí minha tentativa de manda-lo embora.

_ O senhor, por favor, quer fazer o favor de se retirar do meu apartamento.

_ Como assim, Gilberto!? Isso lá é jeito de tratar uma visita?

_ Minhas visitas nunca são indesejadas justamente porque avisam antes de me visitarem.

_ Eu sou Deus, meu filho. Sou onisciente, onipresente e onipotente. Eu tô aqui mesmo sem você saber que eu tô.

_ Então o senhor é Deus?

_ O próprio.

_ Prove.

      E a minha sala foi inundada por lírios brancos que nasciam do ar e exalavam um perfume doce enjoativo.

_ Então o Senhor é mesmo Deus...

_ Sim, Gilberto.

_ Então, por favor, o Senhor pode sumir pra eu tentar fazer de conta que tenho alguma privacidade?

_ Gilberto, eu não tô acreditando!

_ Eu é que não tô acreditando! Aliás, eu nunca nem acreditei no Senhor! O que o Senhor quer que eu faça? Me ajoelhe e comece a lhe adorar!? E o livre arbítrio?

_ Não... Eu achei que seria bom pra você saber que eu existo e... Bom, pensei que faria bem a você.

_ Olha aqui, Deus, eu sei que o Senhor é uma pessoa muito popular e bem quista. Tem muitos fieis, não precisa de mais um.

_ Gilberto!

_ Desculpa duvidar do Senhor, mas era o mínimo que eu poderia fazer, dada a sua timidez crônica.

_ O quê!?

_ O Senhor poderia aparecer na televisão, ou num estádio de futebol, ou mesmo em uma praça movimentada. Mas não! Decidiu se mostrar pra um velho que não tem nenhuma credibilidade e mal sabe usar uma máquina digital! Como vou provar que o Senhor existe?

_ Não vim aqui pra você provar pra alguém que eu existo! Eu vim provar pra você que eu existo!

_ Pois já conseguiu. Infelizmente, isso não muda nada. O mundo continuará o mesmo e a imagem do Senhor ainda será cercada de polêmicas. Pode se retirar agora?

_ Gilberto...

_ Olha Deus, o Senhor pode aparecer outra hora se quiser conversar, mas eu não gostei da forma como o Senhor chegou como se fossemos amigos íntimos.

_ Eu realmente não acredito... Tudo bem, Gilberto, você me surpreendeu novamente. Suas ações terão um preço.

_ Isso foi uma ameaça? Ora Deus, não seja vaidoso. Agora dê licença que eu preciso continuar minha vida. E limpe minha sala, por favor.

      E Deus foi embora com os lírios. Sumiram do mesmo jeito que apareceram. Em seu lugar, eu também ficaria magoado como Ele aparentou estar. Fui muito mal educado e desnecessariamente duro. Está certo que entre nós existem diferenças, mas creio que Ele veio para tentar resolvê-las. A questão é que eu não queria resolver coisa alguma. Estava tudo bem do jeito que estava: Ele no seu canto e eu no meu. Não quero desmerecer uma figura tão grandiosa, mas é fato que minha vida prosseguia normalmente sem Ele da mesma forma que sua existência não dependia da minha crença.

      Reconheço que fui imprudente ao ser arrogante confrontando alguém que, não sei, poderia me desintegrar com um raio laser saído da mão. Deus provou sua fama de misericordioso. Creio que Ele lê isso agora e quero pedir perdão pelo meu comportamento descortês. Ele é uma boa entidade. Reitero aqui meu convite para termos uma discussão filosófica amigável cuja pauta será à sua escolha. Mas, olhe, o Senhor vê a tudo e a todos e ninguém o vê. Se ter bom senso para não crer cegamente em sua existência duvidosa me coloca em débito mortal com Senhor, não quero mais vê-lo nem depois de morto! Dê-me uma caixa de uísque e me mande para o inferno ou para qualquer lugar regido por alguém menos totalitário e mais democrático.

Um comentário:

Louise disse...

Para Gilberto

Seu humor é peculiar, suas ideias, brilhantes.