domingo, 19 de junho de 2011

Julieta.

 

      Julieta, ainda moça, resolveu tomar uma drástica decisão que serviu como um marco em sua vida. Passou a dividir as pessoas que já conhecia, assim como as que ela conheceu posteriormente, em dois grandes grupos: as interessantes e o resto. Apesar de consciente do seu radicalismo, ela nunca foi de se importar com muitos seres humanos. Logo, ser reducionista e fazer julgamentos simplórios, ainda que sabidamente idiota, tornava sua vida social mais dinâmica e divertida. Julieta avaliava as pessoas a partir de detalhes extremamente bestas: de frases impensadas numa conversa informal ao modelo de calçado que a pessoa em questão estava usando. Sua pesquisa antropológica, ao invés de levar em conta critérios respeitáveis ou pelo menos sensatos, era baseada num achismo tão bobo que beirava a infantilidade. Ela era uma atriz incrível e poucos sabiam o quanto era prepotente e arrogante. Julieta se fingia tão bem de qualquer outra coisa que não fosse ela mesma que era querida por quase todos. Difícil não gostar de alguém que se adequa perfeitamente à personalidade da pessoa com que está interagindo, como se isso fosse simples feito dar descarga.

      Se um desconhecido fizesse algo e Julieta desaprovasse, ele era posto imediatamente no grande grupo do “resto” e só poderia sair de lá se tivesse o desprazer de conviver ela. Julieta era falsa e ardilosa com quem não tinha amizade. Aproveitava-se da companhia dos outros para medir o quão divertidamente estúpidos eles conseguiam ser. Claro que estupidez era uma concepção distorcida na mente doentia de Julieta. Ela considerava estúpido, por exemplo, pessoas que sorriem demais, homens que usam chave do carro pendurada na cintura e mulheres que aceitam que os acompanhantes sempre paguem toda a conta. Seus amigos de fato cabiam em uma mão de quatro dedos e eram ouvintes dos piores de tipos de absurdos preconceituosos. Certa vez, em uma festa, Julieta disse à Nádia que havia adorado sua saia com estampa de onça, perguntando, inclusive onde ela havia comprado. Depois, rindo incontrolavelmente, comentou com Carlos como ela parecia uma “traveca pintada”.

      Sei destas coisas porque Julieta era minha melhor amiga. Respeitava seu mau-caratismo porque não conseguia levar aquilo a sério. Ela era tão intolerante e dissimulada que parecia uma super vilã de histórias em quadrinho. O lado sombrio era tão caricato que eu tentava não leva-lo em consideração. Para mim, Julieta só tinha um senso de humor excessivamente negro e nenhuma vergonha na cara. Fora isso, era uma pessoa compreensiva (acreditem), extremamente inteligente, que poderia conversar sobre quase qualquer assunto, além de ser naturalmente muito divertida e absurdamente engraçada. Passávamos um bom tempo juntos, erámos confidentes e cúmplices, falávamos sobre tudo e Julieta parecia realmente gostar mim. Ingenuamente, acreditei que conhecer as qualidades que ela simulava e ter sua companhia eram motivos suficientes para eu me considerar seu amigo. Depois fui descobrir que os “pequenos” desvios de caráter de Julieta eram, na verdade, mostras de uma mente psicopata e megalomaníaca.

      Na carta que Julieta deixou, ela confessou que todos, incluindo os amigos, a deixavam extremamente entediada. Contou que não via graça em ninguém e que fingir interesse estava lhe causando um esforço que não achava mais necessário. Segundo Julieta, ela estava “deveras cansada de procurar um único ser humano que provoque algo que não seja asco”. Falou que nós não conseguíamos despertar qualquer sentimento nela e a distração que proporcionávamos se tornou “repetitiva demais”. Julieta, sem pudor, expressava seu profundo desafeto por aqueles com os quais conviveu durante toda sua vida. Como ela pediu, todos nós, amigos próximos e família, lemos a carta e ficamos bestificados com tamanha desconsideração e frieza. Julieta se achava boa demais para nós. Para ela, todos erámos incorretos, sem sal, hipócritas e fracos. Sua insensibilidade era tamanha que a permitiu dissimular sentimentos ternos como se realmente fossem sinceros. Inconsequentemente, Julieta provocou depressão nos pais, no avô e nas duas irmãs. Ela foi embora porque considerava qualquer lugar uma ideia melhor que dividir este conosco.

Um comentário:

jéssica disse...

Acho que se identificar com esse texto é como ter o botão 'algo está errado' piscando freneticamente. Droga.