sábado, 9 de julho de 2011

Babaca, mas nem tanto.

 

      Ela estava sentada ao balcão tomando a segunda garrafa de cerveja. Eu a vi dando fora em três caras com jeito de só-tô-aqui-pra-beber-e-foda-se-você. Acho muito difícil crer que alguém que vai à boate, num sábado à noite e desacompanhada está atrás só de bebida e não quer ser incomodada por ninguém. Ainda que não fosse consciente, pra mim era mais do que provável que aquela menina estava atrás de pau. As probabilidades só não eram maiores porque considerei a possibilidade de ela ser lésbica. Mesmo no escuro, percebi que era muito bonita. Bom, isso é um pouco de exagero porque a pouca luz só me deixava ver o contorno do seu corpo. Mas achei que seria sacanagem da natureza presentear alguém com formas como aquela e contrabalancear isso com um rosto mal acabado, então não me preocupei muito. Além do mais, já havia duas horas que eu estava procurando uma mulher disponível, o Lucas e o Fábio já tinham se arranjado e eu mais um pouco desistia de conseguir diversão. Enfim, o rosto ocupava uma das últimas posições na minha escala de prioridades.

      Depois de muito observar e constatar que ela estava realmente sozinha, fui lá me vender. Ela já tinha dispensado outros caras sem muita conversa e, confesso, eu fui meio desacreditado. Resolvi fazer uma abordagem agressiva porque qualquer coisa clichê que eu falasse não iria funcionar. Afinal, ela era do tipo que vai-beber-sozinha-em-boate-e-não-tá-nem-aí. É preciso certo grau de autoconfiança e desprezo pelos outros pra fazer algo assim, sem se importar com os julgamentos. Com certeza ela já estava cansada de receber cantadas babacas e ouvir papinhos cínicos, então era necessário fazer algo mais trabalhoso. Eu decidi fugir dos lugares comuns pra tentar surpreendê-la e fazê-la perceber que eu sou “diferente”. Risos. Como se qualquer homem solteiro e heterossexual que se dispõe a ir numa boate não tivesse a fim da mesma coisa... Somos todos iguais, o que nos difere é a forma que usamos pra conseguir o que queremos. O que eu queria fazer era arriscado: ela poderia ser burra demais pra me compreender ou inteligente o suficiente pra não cair na minha lábia.

      Meu plano era chegar, me fingir de menino sem jeito e dizer coisas como: “Olha, eu já vi tu dispensando três caras, não te preocupa que tu não vai precisar fazer o mesmo comigo... Vim aqui porque não é todo dia que a gente vê uma mulher foda o suficiente pra sair de casa e beber sozinha, mas se tu tá aqui deve ter um motivo... Enfim, essa festa tá um tédio, meus amigos foram embora e, se tu não te importar, ficar aqui conversando seria mais legal do que dançar Lady Gaga”. Não é muito bom, porém: é o que tinha pra ontem. Eu me coloquei uma expressão de desinteressado e fui à luta. Sentado ao seu lado no balcão, dei uma olhada de canto de olho, cruzei os braços, respirei fundo, me virei... mas, eis que quando me preparava pra articular as palavras, arregalei os olhos, fechei a boca e quase não me contive quando vi a minha salvadora. Estampada na blusa da menina em preto-branco, reluzindo na luz negra e com um sorriso tosco à la Mona Lisa: Santa Clarice Lispector. Quase não pude segurar meu riso de satisfação. Com a maior calma do mundo, olhando contemplativo para uma garrafa do outro lado do balcão, disse alto suficiente pra ela me ouvir:

_ É estranho sentir saudades de algo o qual mal vivi ou evitava viver. (Havia visto no Twitter)

_ Oi? (Ela virou e vi que tinha o rosto quase tão bonito quanto o corpo)

_ Nada... Vi a Clarice na tua blusa e me lembrei dessa frase. É muito bonita. (Mentira, eu acho de uma forçação de barra triste)

_ Nossa, tu é fã dela? (Imediatamente me imaginei com meus amigos, tomando vinho e fazendo emocionadas leituras dos livros de Clarice)

_ Claro! Ela é uma das melhores escritoras que existem. Já li “A Hora da Estrela” e “A Paixão Segundo G.H”, e tu? (Eu li a capa)

_ Já li “As Pequenas Descobertas do Mundo” e “A Hora da Estrela”. (Pensei: “Ótimo, não leu nem metade do que a mulher escreveu, posso falar qualquer merda”)

_ Ela é demais, né? Consegue escrever de um jeito tão poético... me vejo muito nos textos dela. (De novo, quase não seguro o riso depois de dizer isso)

_ Eu também! Ela fala de solidão de um jeito único, muito profundo, parece que tá falando exatamente o que tu sente. (O horóscopo também)

_ Eu sei! Não é incrível o nível de compreensão que ela tinha? A habilidade dela de usar a linguagem pra explicar o inexplicável? De chegar ao inalcançável e ver o invisível? (Eu não consegui não rir nessa hora, mas dei a entender que eram risinhos de nossa-tô-muito-empolgado-olha-como-tô-feliz)

      Mônica fazia aquele tipo de menina que só gosta de bandas semi-inexistentes que ninguém nunca ouviu falar por aqui. Era parte do clã que acha inaceitável alguém assistir Triplo X ao invés de um Laranja Mecânica da vida. Gente estranha que se veste igual e se acha mais inteligente que os outros porque assiste séries ao invés de novela e sonha em morar na Europa, mesmo nunca tendo ido à Europa. Além de Clarice, ela também idolatrava “divas do cinema” como Audrey Hepburn, Greta Garbo e Brigitte Bardot. Mônica disse que suas atividades favoritas eram: “Ler, escrever, fotografar, ouvir música, admirar a chuva, comer só o recheio dos biscoitos e ficar molhando os pés até enrugar antes de tomar banho”. Um minuto de silêncio... Quando saquei a dela, foi muito fácil falar exatamente o que ela queria ouvir. A menina era tão previsível quanto as piadas do Zorra Total. Falei meia dúzia de bosta sobre uns filmes do Kubrick; inventei umas curiosidades sobre os Beatles; disse que meu segredo ridículo era o sonho que eu tinha de viver um grande amor em Paris, falei dos cafés de Montmartre, da grama do Champ de Mars e dos cinemas da Champs-Élysées: foi mais do que o suficiente pra Mônica ficar encantada por mim. Nesse meio tempo ela já havia bebido mais duas garrafinhas e não foi difícil leva-la ao motel. Que ninguém me chame de aproveitador barato: no sexo casual há pelo menos duas pessoas diretamente envolvidas sentido prazer, eu nunca fui egoísta em relação a isso e até paguei a conta que, aliás, não foi nada barata. Felizmente ela era espetacular e valeu o investimento. Deu seu celular e me fez prometer que ligaria. Óbvio que não vou ligar, né, comer ela duas vezes seria muita sacanagem.

4 comentários:

Jaya Magalhães disse...

Já espalhei o link para esse texto porque, cara, MUITA GENTE precisa ler isso aqui. Ando cansada pra caramba desse mundo pseudo tudo.

E você, como sempre, foda. Diálogos, cenas, personagens, situações. Tudo muito conexo, muito isso e bater o olho, ler tudo de uma vez e achar que devia ter mais história pela frente.

Obrigada pela leitura, mais uma vez, Tiago.

Abraço.

TIAGO JULIO MARTINS disse...

Eu que agradeço mais uma vez, Jaya. :)

Ellen Brito disse...

Seus textos costumam ser longos, sempre falo " vou ler só um pedacinho". Mas não tem como rs. Até esses mais cruéis, são demais!

TIAGO JULIO MARTINS disse...

Ellen, acho que os textos "mais cruéis", aqueles que provocam, são os melhores. haha

'Brigado pelo comentário. :)