quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Cândida Reza.

Naquela noite, eu desfrutava da aprazível companhia de minha invencível solidão e da insônia que até hoje insiste em me perseguir querendo sabe deus o quê. No escuro eu ensopava de suor graças ao calor infernal, sentia um cheiro de éter velho e a brisa porca do ventilador atirava poeira contra as minhas narinas. A televisão estava sem sinal, eu me distraia com aquele zumbido irritante enquanto ela projetava faíscas pretas descontroladas no meu rosto. Deitado com o peito virado para o teto, mãos na nuca, olhos acompanhando as linhas paralelas feitas pelas madeiras do forro: pensava no dia repetido, no meu isolamento costumeiro, nas pessoas que perderam o gosto, em gente desconhecida, em hipocrisias, no sono, na história, até que finalmente cheguei a ela.

Daquela vez eu sorri quando me lembrei dela, sorri porque eu estava fazendo papel de idiota, pior: um idiota absolutamente consciente e que reprovava sua idiotice. Nessa madrugada tediosa quando eu recordava dela, só vinham à tona frases raras, um rosto angelical e uma voz de ninar. Era o resumo mais fantástico que eu já tinha feito de algo ou alguém.

Eu tinha palavras, traços e som: era o ator coadjuvante do meu próprio filme surrealista. Ela e eu no meio de uma plástica dissonante de letras, formas e barulho.

O óbvio era imprescindível para introduzir o que aconteceria posteriormente (esse é mais teu que meu):

Fechei os olhos por seis segundos para vaporizar a sujeira e o lixo do quarto numa fumaça pesada e palpável, era necessário criar uma atmosfera noir antes de encaixá-la, caso contrário, o resto não teria o menor sentido. Levantei as pálpebras e o quarto estava tomado por uma neblina sépia-desbotada, ela dançava valsa embalada pelos sopros do ventilador que volitava no breu produzindo mini-tufões enquanto eu admirava-o espantado. Ele zombava de mim com ciclones cínicos vindos de suas piruetas acrobáticas: o vento girando em sentido horário era o inverso do assombro que eu já havia previsto, mas tentava, em vão, atrasar. Susto é vento violento.

Quem gravava a cena, sem cortes, era uma micro-câmera posicionada nas costas de um mosquito bêbado que vagava pelo ambiente transpassando a luz vinda da televisão, ela nesse momento cuspia pontos pretos minúsculos para todos os lados que, depois, voavam como um enxame de vaga-lumes mortos. Como não consegui distinguir o mosquito no meio daquele carnaval sem cor, cada ponto preto era um olho meu: desconexo, incontrolável, perdido, confuso, dela.

Já não tinha intervalos suficientes para ter medo: estava atônico observando os olhinhos negros filmando, no mesmo segundo, múltiplos ângulos que convergiam no centro do quadro praticamente vazio.

A televisão havia se despido de quase todos os seus grãos, e agora era apenas uma tela branca silenciosa que produzia um brilho alvo, meio opaco e muito melancólico, que atravessava a névoa com dificuldade e dissipava-se, uniformemente, pelo resto do quarto transformando objetos em silhuetas semi-reconhecíveis.

Quando o último grão desprendeu-se da superfície de vidro da TV e juntou-se aos outros, foi surgindo vagarosamente na tela o rosto dela, é inútil tentar descrever sua beleza. A interferência que antes nos afastava e a prendia naquele mundinho paralelo, diminuto e incolor, finalmente havia desistido de nos atrapalhar e passou a contemplar ansiosa a cena: escreveu a história e sabia como terminaria. Os pontos esperavam para conhecer o pós-fim, daquela vez não existiria recomeço (ah, o sadismo... Conheces?).

Eu fiquei sentado com a costa apoiada na cabeceira da cama, braços cruzados, coração acalentado e com a visão fixa nas formas primorosas que construíam o rosto dela. Ela sorriu cintilante para mim de dentro da pintura e eu lhe respondi piscando o olho direito. Então eu já não precisava fazer coisa alguma.

Trinta minutos, ou talvez três horas, noites, tanto faz.

Foram poemas de amor, discursos existencialistas, muita euforia, palavrões, condenações, cansaço, lamentos de velhas paixões, saudades, nostalgias, conclusões a respeito da felicidade e da tristeza, declarações abafadas, desejos íntimos, constrangimentos, ideais de perfeição, verdades indiscutíveis, alegrias, ânsias e uns olhares molhados pela cumplicidade. Eu variei entre risos, perplexidade, admiração, prantos e ausência. Ela vomitava-se sobre a minha solidão e eu permanecia mudo. Era inútil falar qualquer coisa: ela conhecia, entendia, refletia e compartilhava cada uma das minhas palavras escritas, pronunciadas, perdidas ou abafadas, junto de todas as suas combinações possíveis ou improváveis... Ou talvez não, mas ela tem uma criatividade gigante e encantadora, acho que não teria dificuldade para me completar.

Enfim, após esvaziar-se inteiramente e me encher dela até chegar ao ponto de dilatar os meus mais remotos limites, depois de depositar-se em mim, a minha vida fundiu-se a dela numa existência só: fluído químico homogêneo que reagia no meio daquela circunstância metafísica inexplicável.

Além das fronteiras de mim, depois das fantasias, no avesso da poesia, perto do fim dos significados e das palavras não existia nada, fora o vácuo, mortificando-a naquele universo paralelo que a separava de mim por kilômetros longínquos dentro de tempos intermináveis. A única coisa que nos ligava eram suas palavras multicoloridas pela minha compreensão.

Quando ela finalmente calou-se, permaneceu com a feição fechada por uns segundos, estava séria e tinha os olhos tristes. Deitou seu lindo queixo na mão esquerda e confessou, num tom exausto e com a voz embargada, que a única coisa queria naquele momento era mandar o mundo e tudo que há dentro do mundo ir à merda. Então eu não me agüentei e, por fim, reagi com a intensidade que ela merecia: gargalhei. Eu ri um riso inocente, mais arrebatamento que brincadeira, mais desabafo que riso, mais lágrimas do que dentes, mais ternura que descontração, mais um “eu te amo” impronunciável.

Furei a bruma e aproximei-me da televisão num salto desajeitado, com a cara encharcada e entupido daquela felicidade imensa, acompanhei os traços singelos acariciando a tela com o indicador. “Que vá todos e tudo à merda”, falei-lhe radiante. Mas ela permaneceu estática com a mão apoiando a cabeça, o olhar desencontrado, produzindo aquela atmosfera infeliz e com os pensamentos... Não sei onde estavam... Realmente não sei... Claro, claro que sou tentado a acreditar que eles eram meus, mas... Como poderia definir algo no silêncio remoto? Silêncio sem formato, infinito, reservado, envolvente, meu silêncio roubado e desconhecido.

Repeti minha única fala três, seis, nove, vinte e sete, cinqüenta e quatro vezes. Repeti quando ainda tinha esperança, repeti quando não quis acreditar, repeti quando já sabia, repeti gritando, repeti chorando, repeti furioso, repeti conformado e repeti sem voz, depois eu apenas rezei em silêncio, sem repetir, pedindo com todas as forças para que ela soubesse da minha inútil presença distante.

A televisão desligou-se, a mágica do ambiente pereceu instantaneamente. O ventilador caiu no chão, a neblina desfez-se, e o enxame de vaga-lumes mortos bailou imponente antes de sumir. A interferência, enfim, havia ganhado e provado ser imbatível perante a mim, mostrou-me que imaginação não concretiza o impossível nem distorce o inevitável. O quarto foi engolido pela penumbra mórbida, e o meu filme morreu com o mosquito bêbado que não pôde com a sua solidão. Eu permaneci de joelhos, orando.

Num momento dúbio de lucidez, eu cheguei à conclusão de que escrever, fora milhares de outras sensações, qualidades e definições possíveis, é encarnar um deus que não existe: foi para esse deus que eu roguei e vendi minha alma naquela noite.

Pós-Fim.

12 comentários:

(...) disse...

Uma hipérbole não exagerada.

"mais um “eu te amo” impronunciável."

Meu amor-tece-dor.

=*

Camila disse...

Nossa Tiago.
Desculpe mas seu texto é tão denso q não sei o q dizer! POr mais q eu leia não consegui absorve-lo!
=)
BeijooOO

Anônimo disse...

"um riso inocente, mais arrebatamento que brincadeira, mais desabafo que riso, mais lágrimas do que dentes, mais ternura que descontração, mais um “eu te amo” impronunciável."
bonito é muito simplório para a situação, é lindo mesmo.

Filipe Garcia disse...

Olá meu caro Tiago.

Li o seu texto todo e tive uma sensação estranha: parecia que eu estava embriagado. É realmente louco isso, mas, todas as vezes que eu conseguia formar a imagem da história em minha mente, você, com sua narrativa, bagunçava meus neurônios. Ter me causado esse efeito, por um lado, foi bom. É notório que suas palavras embriagam. No entanto, me perdi demais no enredo. Achei tudo tão denso, tão alucinógeno, que terminei de ler o texto aliviado. Talvez tenha sido essa sua proposta de dar ao leitor a impressão de "vou te levar pra dentro de um sonho". Não sei, mas não me alcançou.

Deixando isso à parte, devo admitir que a sua escrita é realmente muito boa. Seu vocabulário, semântica, sentidos e brincadeiras com as palavras são verdadeiros atrativos.

É isso aí.

Abraço.

Idylla disse...

Oi, oi eu de novo rsss...qnto aos elogios são merecidos!!!
O texto q postei eh muito radical sim, mas tem certos pontos q concordo plenamente c o q ele diz!!!!

Bjooo =**

Jaya Magalhães disse...

Tiago,

Eu li muitos de você nessa página aqui. Li a Menina, a Ânsia, as palavras ao som de Portishead, e, por fim, a Reza. Li muitos de você, mas notei que todos carregam a mesma essência. Essa essência errante, incerta. Vaga. E a melhor parte? É que eu gostei. Já fui um tanto assim, e sabia exaltar. Hoje me perco em minha desarmonia, e aí fico contente quando encontro chão em palavras como as tuas, que chegam assim, num impacto despretensioso. É desigual teu jeito de envolver as letras, e por isso meus olhos nem piscaram enquanto fui te acompanhando.

Sobre o texto atual, estou deveras embasbacada. Não sei o que aconteceu, não. Eu sei que acabei passeando dentro dele. O primeiro parágrafo tá ensopado de coisas recentes minhas, por assim dizer. Criei afinidade. Fui a personagem. Tomei teu lugar. O fechar de olhos foi um convite a isso. E as mudanças que ocorreram quando pude outra vez continuar a ser parte das cenas, me fizeram acompanhar de perto o novo tom sépia-desbotado. Gosto dessa coisa de abstração. Consegui acompanhar os meandros confusos. Me confundi, também. Mas os encontros anteriores compensaram os equívocos.

Por fim, vale dizer que me assombram momentos de lucidez. Evito conclusões nessa hora. Haha!

Beijo.

P.S.: Obrigada pela visita em meu canto. Gostei de ver você fazer a tradução das minhas palavras de forma tão exata e direta. Volta, sim! Te espero, e retorno, também. :]

Anônimo disse...

Adorei o mosquito bêbado.

Belo texto. imprecionantemente rico. Embarquei neste mundo utópico que esse deus, que vendestes a alma, criou.

parabéns.

Anônimo disse...

não li. que nem tu fizeste.

mas deixei um recado. bjins

Antunes Ferreira disse...

LISBOA - PORTUGAL

Olá!

Cheguei a este blogue através de outros que costumo visitar e neles postar comentários. Cheguei, vi e… gostei. Está bem feito, está comunicativo, está agradável, está bonito – e está bem escrito. Esta é uma deformação profissional de um jornalista e dizem que escritor a caminho dos 67…, mas que continua bem-disposto, alegre, piadista, gozão, e – vivo.

Só uma anotaçãozinha: Durante 16 anos trabalhei no Diário de Notícias, o mais importante de Portugal, onde cheguei a Chefe da Redacção – sem motivo justificativo… pelo menos que eu desse com isso… E acabo de publicar – vejam lá para o que me deu a «provecta» idade… - o me(a)u primeiro livro de ficção «Morte na Picada», contos da guerra colonial em Angola (1966/68) em que, bem contra vontade, infelizmente participei como oficial miliciano.

Muito prazer me darás se quiseres visitar o meu blogue e nele deixar comentários. E enviar-me colaboração. Basta um imeile / imilio (criações minhas e preciosas…) e já está. E se o quiseres divulgar a Amiga(o)s, ainda melhor. Tanto o blogue, como o imeile, tá? Muito obrigado

www.travessadoferreira.blogspot.com
ferreihenrique@gmail.com

Estou a implementar e desenvolver o projecto que tenho para o meu www.travessadoferreira.blogspot.com e que é conferir ao meu/vosso/NOSSO blogue a característica de PONTO DE ENCONTRO entre os Países fraternalmente ligados – Portugal e Brasil. E outros PALOP e etc…
Se me enviares o teu IMEILE, poderei enviar-te «coisas» que ache interessantes. Se, porém, não as quiseres, diz-me que eu paro logo. Sou muito bem-mandado (a minha mulher que o diga…) e muito obediente (cf. parênteses anterior). Abrações e queijinhos, convenientemente repartidos e distribuídos

– Desculpa por este comentário ser tão comprido e chato. Como a espada do D. Afonso Henriques…
- Já conheces o me(a)u «Morte na Picada» que acima menciono? Há quem diga que é muito bom. E até que é o melhor que se escreveu em Portugal sobre o tema. Dizem… Obviamente que não sou eu a dizê-lo… Só faltava… E também há quem tenha escrito que é SANGUE & SEXO… Malandrecos… Pelo sim, pelo não, compra-o.
Depois de o leres, se, por singular acaso, tiveres gostado dele, terás de comprar muitíssimos mais exemplares. São excelentes prendas de aniversários, casamentos, divórcios, baptizados, e datas como Natais, Carnavais, Anos Novos, Páscoas, Pentecostes, vinte e cincos de Abris, cincos de Outubro, dezes de Junhos. Até para funerais. Oferecer o «Morte» na morte fica bem em qualquer velório que se preze. E, além disso, recomenda-o, publicita-o, propagandeia-o, impinge-o aos Amigos, conhecidos, desconhecidos & outros, SARL. Os euros estão tão raros e... caros...
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A editora da obra é a Via Occidentalis (occidentalis@netcabo.pt) cujo site é www.via-occidentalis.blogs.sapo.pt. Neste blogue podem ser consultados mais dados sobre o livro, cujo preço de capa é € 14,70. ATENÇÃO: Pode ser comprado pela Internet.
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NOTA IMPORTANTE: Este texto de apreciação e informação é similar em todos os casos em que o utilizo. Digo isto, para quem não surjam dúvidas ou suspeitas sobre a repetição em diferentes blogues. E para que ninguém se sinta ludibriado – ou ofendido… Há feitios que… Mas, sublinho, apenas o uso quando o entendo, isto é, quando gosto mesmo dos que visito. Nos outros onde também vou, se não gosto, saio sem comentários. Há muitos mais. Aqui na terrinha diz-se que «se não gostas, põe na beirinha do prato…»

Anônimo disse...

pows... eu não li de novo.
hauhauhauahauhuahauhau

mas eu juuuuuuro que eu vou ler. logo logo.

volte sempre lá pelo meu espaço.

disse...

To sendo coadjuvante da minha vida, porque se eu decidir ser o ator principal, o filme vai ficar confuso e ninguem vai entender nada.

seus textos são otimos!

Anônimo disse...

Égua, sabes que virei tua fã :D
Mas algumas das tuas criações me deixam na angústia só de ler.
Tens as palavras pesadas, amigo.
Bem arrumadas, mas pesadas.
Beeeijos